domingo, 31 de outubro de 2010

FAMÍLIA

Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela. Fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vem a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida, (azeitona verde no palito) sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente.

E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for não fique aí reclamando do gênero e do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo! Agora ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.

Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar, tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.

Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Meuniere; Família ao Molho Pardo, em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.

Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

Autor: Francisco Azevedo
Texto enviado por Jorge Amaral
 
Acha necessário acrescentar algo na sua receita ou está satisfeito com a família que escolheu? Aprecie sem moderação!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O COMPLEXO DE JONAS

Jonas é aquele que foi chamado um dia: “Meu filho, desperta e vai para Nínive, a cidade grande. Lá crianças estão matando crianças, jovens matam pessoas dormindo de madrugada, pais não estão nem aí com relação à juventude, todo mundo está pensando só em si... Vai para Nínive; lá a velhacaria é consagrada, os velhacos são aqueles que têm sucesso; uma pessoa pura, inocente, em Nínive, se falar num meio político, por exemplo, vai ser ridicularizada; uma pessoa honesta, pura, de bons sentimentos é motivo de riso... tem que ser esperta, tem que ser velhaca. Jonas, vai para Nínive, porque lá um jovem, se quiser demonstrar que tem um coração bom, se quiser ser bondoso, generoso, vai ser ridicularizado; tem que dar porrada! Jonas, vai para Nínive, porque esse povo está perdido; 40 dias mais e não haverá mais Nínive!” Vocês notam que essa é uma mensagem muito atual. E Jonas foi para Nínive? Não! Ele pegou um barco, mas foi para um Társis, um local tranquilo. Isso mostra, como nós temos uma tendência a fugir de nossas missões. Primeiro, há uma consciência interna que nos desperta, que nos coloca de pé. Pode ser uma crise, pode ser um terremoto, pode ser uma perda... há um momento em que você fica de pé. Porém, há sempre um convite sedutor da covardia e Jonas foge da sua própria promessa e, então, vem uma grande tempestade. Isso nos ensina que, quando você foge do seu próprio caminho atrairá tempestades; não só para você, também para as pessoas que estão ao seu lado.

A doença não é ruim; se você a escuta ela se torna um texto sagrado a ser interpretado. Ela tem uma mensagem: a doença é um fax que você recebe e que diz: “Você se desviou do seu caminho”. Eu levei muitos anos para aprender isso: quando nos desviamos do nosso caminho nós atraímos doenças, acidentes, nós atraímos infelicidade. Acontece que vivemos num momento tão perdido que dizemos "tomou doril..." Não interpretamos e o telefone continua tocando; às vezes em outros números até que pode ficar tarde demais. Então, Jonas que estava dormindo no porão do navio, novamente foi colocado de pé pelo capitão que indaga por que ele não está clamando por seu Deus, como todos os outros. Jonas era um fujão, mas era, também, um homem sincero que me faz lembrar o poeta Omar Khayyan que inicia o seu Rubaiyat dizendo: "Todos sabem que meus lábios nunca murmuraram uma oração. Não procurei nunca dissimular os meus pecados.

Ignoro se existem realmente uma Justiça e uma Misericórdia. Mas, se existem, não desespero delas: fui sempre um homem sincero.” Quem pode dizer isso? Jonas foi sincero e disse : “Eu sou a contradição, eu estou fugindo do meu Deus, estou fugindo da minha palavra, estou fugindo da minha voz mais profunda. Podem me atirar no oceano que a tempestade vai amainar.” Mas, os homens eram generosos e primeiro tiraram a sorte que apontou para Jonas.

O que é sorte? É o que Jung chama de sincronicidade, mas os antigos, chamavam de sinais: eles ouviam o trovão, eles ouviam a coruja que pia, eles ouviam a pedra no meio do caminho, porque sabiam que faziam parte do Universo. Sabiam que eles não eram destacados do Universo e nós perdemos essa orientação, essa consciência de participação. Tornamo-nos pobres diabos jogados num mundo sem sentido... É isso que o normótico crê de si mesmo. Portanto, Jonas mergulha no oceano. Esse é um outro ensinamento muito importante; como dizia um grande sábio, mestre Eckart, diante da Inquisição: “Eu posso me enganar mas eu não posso mais mentir”. Há um momento em que você não pode mais mentir, você vai sofrer tanto, vai atrair tanta tempestade, que você vai resolver mergulhar mais cedo ou mais tarde, um dia todos nós mergulharemos no poço de nós mesmos. E aí, Jonas terminou no ventre do grande peixe e lá ele de novo disse: “Eu vou para a minha batalha, eu juro de novo, eu faço solene promessa”.

Esses textos são muito antigos e são muito atuais, são muito contemporâneos. Em seguida, quero apenas ilustrar um pouco, através de alguns riscos, esse oceano onde Jonas mergulhou, esse poço que podemos chamar de ser humano.

CREMA, Roberto. Novo milênio, nova consciência. In: SIMPÓSIO NACIONAL SOBRE CONSCIÊNCIA, 1., 2006, Salvador. Anais... Salvador: Fundação Ocidemnte, 2006.

E nós? Estamos buscando ajudar Nínive ou buscando um Társis?
Opine.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O que é um ser humano?

Nós não sabemos o que é um ser humano pleno. Não sei se vocês já conheceram um ser humano pleno, inteiro, verdadeiro. Eu receio ter que dizer que o ser humano nesse momento é uma grande utopia, não no sentido do irrealizável, no sentido do irrealizado ou ainda não realizado, aquilo para o qual não há espaço.

O que é um ser humano? O ser humano é uma promessa. Os antigos diziam que o ser humano ainda não nasceu, que nós somos uma possibilidade. O ser humano é um potencial de florescimento. Se nós investirmos na dimensão do coração, na dimensão da alma, poderemos nos tornar seres humanos plenos. Porém, temos feito isso? Quando é que eu inclinei meu coração para aprender, aprender realmente quem sou e comprar uma briga, nadar contra a correnteza muitas vezes. Porém, quando você se coloca no seu caminho, que é o caminho da sua promessa, o caminho com coração, então o mistério conspira por você e você evolui de uma existência perdida, alienada, para uma existência escolhida, ofertada. Portanto, essa é uma grande pergunta: "O que é o ser humano”? E antes de falar sobre a questão específica da liderança, eu gostaria de fazer uns traços a título de indicação e, inspirando-me nesse grande irmão, Jean-Yves Leloup, para falar de algumas visões do ser humano. Não é possível saber o que é liderança, nem o que é educação, nem o que é saúde, se nós não esclarecermos nossos pressupostos antropológicos, ou seja, a visão que postulamos do ser humano porque é a partir dessa visão que diremos o que é saúde, o que é patologia, o que é uma liderança efetiva, o que é excelência humana e o que é miséria humana.

Até onde eu posso enxergar, existem 3 tipos de seres humanos:

- Aqueles que nascem e morrem piores do que nasceram - são os degenerados;
- Aqueles que nascem e morrem como nasceram - são os que mantiveram a saúde; e
- Aqueles que nascem e se tornam quem eles são, assim como uma flor se torna uma flor, uma mangueira se torna uma mangueira - são os que aceitaram o desafio da evolução.

Quando perguntaram para Krishnamurti - que foi um ser humano pleno! - “Por que você ensina?”, ele respondeu: “Por que um pássaro canta?”. Eu gosto muito da provocação e sempre lembro de Abrahan Maslow, um dos pais da psicologia humanística, que dizia: "Num certo sentido, apenas os santos são a humanidade”. O resto não deu certo. Quer saber o que é um ser humano? Estude os santos, não apenas os da tradição católica; também os da tradição hindu, taoísta, xamanística, da tradição sufi, todas as tradições; e os agnósticos também (os santos sem tradição). É preciso estudar seres humanos que deram certo. E aí, lembro-me sempre dessas palavras de Teresa de Calcutá: "Santidade não é um privilégio de poucos, é uma necessidade de cada um de nós". E digo mais; nesse momento é uma obrigação de cada um de nós! Acontece que projetamos o nosso potencial em algumas pessoas especiais, o que os antigos e o próprio Maslow chamavam de complexo de Jonas, que o Jean-Yves Leloup interpreta tão bem no seu livro "Caminhos da realização". Jonas, em hebraico, significa a pomba das asas cortadas. Jonas é esse ser que nos habita e que tem medo de ser quem ele é, que tem medo de atender ao chamado. Os antigos estudavam os personagens das escrituras não apenas na sua dimensão histórica, mas também como grandes imagens, imagens estruturantes da nossa psique, da nossa existência, arquétipos diria Jung.

Parece-me que Jonas é o arquétipo que precisamos estudar quando queremos falar sobre liderança, porque ele nos indica sobre o nosso desejo inconsciente da normose: como resistimos a investir no nosso potencial máximo.

CREMA, Roberto. Novo milênio, nova consciência. In: SIMPÓSIO NACIONAL SOBRE CONSCIÊNCIA, 1., 2006, Salvador. Anais... Salvador: Fundação Ocidemnte, 2006.

E aí, o que é um ser humano? Seremos um desses?