No campo das religiões afro-brasileiras, o candomblé se constitui em uma das vertentes mais destacadas na área urbana do Brasil. Organizado em um sistema simbólico, que funciona como um princípio de estruturação de uma experiência de ação intra-mundana e produz um ethos “enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação” (ibd; 146).
Com base em Weber, Bourdieu argumenta que o processo de racionalização religiosa envolve a transformação do ethos implícito em ética - conjunto sistemático e racional de normas explícitas. A ação pedagógica do sistema de crença afro-brasileiro é norteada pela tradição oral de transmissão e preservação dos preceitos sagrados. Entretanto, também podemos observar no candomblé um trabalho crescente de racionalização desenvolvido por uma camada de intelectuais interna à própria religião que orienta todo o pensamento do grupo. Constituindo cada vez mais para a transformação do ethos em ética, no sentido que Weber dá ao termo.
O campo religioso tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é, o interesse religioso que leva os leigos a esperar de certas categorias de agentes mediadores na experiência religiosa, que realizem ações mágicas ou religiosas, ações, fundamentalmente, “mundanas” e práticas, conduzidas com a finalidade de que tudo corra bem para o corpo de fieis, que aderem a um sistema de crenças e a um estilo de vida particular.
As religiões afro-brasileiras, em particular os candomblés, se constituíram como um empreendimento de diversos agentes religiosos, que resultou na formação de um corpo de sacerdotes responsáveis pela sistematização de um ethos religioso calcado nas diversas tradições africanas. Esse corpo de especialistas detentores de um capital religioso, com um domínio prático dos esquemas de pensamento e normas e conhecimentos está incumbido de reproduzir o capital religioso.
Os pais e mães-de-santo dos terreiros de candomblé são reconhecidos como detentores exclusivos de um monopólio na gestão dos bens sagrados. Detentores de um domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento, somados a presença de traços africanos, em maior ou menor intensidade, passaram esses traços diacríticos a funcionar como elementos definidores de suas legitimidades e competências, necessários à produção e reprodução de um corpo deliberadamente organizado de conhecimentos esotéricos e secretos. Suas autoridades são inquestionáveis no âmbito mítico-ritual, seus perfis de liderança são desenvolvidos na dinâmica concreta dos seus terreiros, pela sua capacidade de manter a estabilidade, controlar os conflitos, de garantir o recrutamento contínuo e evitar a deserção dos membros e da clientela, processo que consolida e a prova sua legitimidade pela competência em administrar os bens sagrados.
É o pai ou mãe-de-santo que os fieis vêem como a “âncora” ou o “porto seguro” contra os perigos do universo das aflições. Os seus sucessos e fracassos vão lhes conferindo uma identidade, atribuindo uma identidade aos terreiros que administram, enquanto uma entidade reconhecida no campo religioso, que revela o resultado de suas decisões e ações, mediatizados pela rede de relações e circunstâncias que poucas vezes chegarão a controlar completamente. Desta maneira, o sacerdote e o terreiro se identificam, pois os destino de ambos estão interligados (Bruman & Martinez;1991:150).
A constituição do campo religioso afro-brasileiro implica um primeiro corte entre os detentores do controle dos bens religiosos- iyalorixás e babalorixás – e aqueles que lhes são subordinados: os abiã, iawô, egbomi, ekedes e ogãs e a clientela. Segundo Weber (1991), os sacerdotes sistematizam o conteúdo da promessa profética ou das tradições sagradas no sentido da estruturação racional-causuística e da adaptação destas aos costumes mentais ao estilo de vida de sua própria camada e daquela dos leigos por eles dominados (1991:315), processo este que é marcado por uma dinâmica de poder envolvendo alianças e negociações e por vezes conflitos abertos.
Os responsáveis pela formação e consolidação das “roças” foram uma camada religiosa, liderada pelas Iyás (mães, zeladoras) e Babás (pais) auxiliados por uma confraria hierarquizada, constituindo um corpo de especialistas socialmente reconhecidos entre os escravos e libertos, nos meados do século XIX.
Esses indivíduos se destacaram pelo seu carisma e pela posição que alguns deles ocupavam na estrutura religiosa na África; no Brasil passaram a ser reconhecidos como detentores exclusivos de uma competência, necessária a produção/reprodução e difusão do sistema de crença africano, transformado em afro-brasileiro.
O campo das religiões afro-brasileiras, em particular aquele conformado pelos terreiros de candomblé foi organizado, inicialmente, de forma cooperativista, tecendo alianças entre as etnias, que muitas vezes eram rivais historicamente no continente africano, existindo no interior dessas comunidades uma permanente ajuda mútua, trocas de favores, mantendo-se assim uma solidariedade via teias de prestações e contraprestações que terminaram “por engendrar relações mais próximas, contatos mais efetivos e afetivos, muitas vezes consolidados pelo estabelecimento de laços religiosos duradouros” (Braga;1995:60).
Essas redes de relações entre os agentes religiosos levaram a criação de organizações conventuais, estruturadas em normas e padrões étnicos, manipulando determinados sinais diacríticos (língua, culinária, sistema mitológico, rituais, etc.,), em oposição a outros sistemas de crenças, oriundos do continente africano e dos índios brasileiros.
Essas organizações conventuais são os terreiros ou roças de candomblé. São instituições resultantes da manipulação dos traços identitários das civilizações africanas que se organizaram em nações, aqui no Brasil. Desse modo, a nação não é apenas a procedência territorial (Costa Lima;1997: 77-8), mas sim todo um conjunto de padrões ideológicos e rituais.
Se o tráfico de escravos foi um fator de desagregação étnica, paradoxalmente, foi também um componente da construção de novas identidades e novas tradições na América. Essas identidades chamadas de nação adquiriram um uso suficientemente amplo para integrar diversas tradições, funcionando como uma rede, ou melhor, constituindo uma teia de alianças. O terreiro passou a condensar os valores de uma África mítica. Isso significa dizer que os Orixás na África pertenciam a localidades (grupos étnicos) diferentes e transplantados para o Brasil passam a se concentrar no mesmo território.
O terreiro (egbé) é o espaço físico impregnado de signos que revelam a consciência ancestral, não sendo apenas uma área delimitada geometricamente. No terreiro estão presente as representações do aiyé (terra) e do orum (espaço transcendental), representado nos assentamentos dos Orixás e Eguns, Exu e Caboclos. Decerto, o terreiro é o lugar pertinente a manipulação de símbolos pelos fieis que partilham uma socialização calcada na herança, conjunto de bens simbólicos que se recebeu dos ancestrais.
E foi o terreiro o expediente mais eficaz na manutenção de uma tradição re-semantizada e resimbolizada. Os terreiros de candomblé organizados enquanto uma comunidade com características próprias de área verde, representando a floresta sagrada, o barracão, salão principal das festas públicas com espaços delimitados aos membros efetivos da casa e à assistência, as áreas sagradas destinadas à iniciação e reclusão dos neófitos, as casas dos Orixás, como pode ser visto atualmente, se constituíram como informa a literatura etnográfica afro-brasileira (Carneiro, 1948; Costa Lima, 1977) no primeiro quartel do século XIX. Como nota Serra (1995:33) os cultos afros já eram realizados há bastante tempo e a indicação de uma faixa temporal, por certo, se refere à criação de um modelo de culto dominante.
Autor: Fábio Lima (professor, escritor e meu amigo!!)