domingo, 15 de julho de 2012

Entrevista com Jean-Yves Leloup - De onde vem a Paz

- Vivemos um momento mundial de crise e conflito, com guerras, atentados, solidão, miséria, abandono. Diante disso, o senhor é pessimista ou otimista?

Sou realista. Acredito que essa época nos desafia a ficarmos lúcidos, a recusar todas as ilusões, porém sem perder a noção de que as mais sublimes qualidades sagradas - o amor, a esperança, a ternura, a compaixão - habitam cada um de nós, mesmo os que vivem nas condições mais desfavoráveis. A transformação do mundo começa pela transformação do ser humano por meio da educação e de uma visão global. Isto é, a todo instante, a cada escolha, temos de ter consciência de que tudo está interligado, que não se pode arrancar um tufo de grama aqui sem incomodar a estrela que está a milhares de quilômetros no céu, acima de nós.

- Como é possível perder as ilusões e não desesperar?

Vivendo no momento presente. Num dos encontros que tive com o Dalai-Lama, perguntei a ele o que é o nirvana e ele me respondeu: "É ver as coisas como elas são". A mesma sabedoria é encontrada no Evangelho em que Jesus dizia: "Isto é, isto é", nos convidando a viver sem acrescentar adjetivos, sem nos iludirmos, mas encarando o que está diante de nós como incentivo para seguir. Não podemos ficar apegados ao que queremos ver, m as enxergar bem a realidade, mesmo a mais cruel, como ponto de partida para ir mais longe.

- Para viver no presente, é preciso prestar atenção. Esse é justamente o tema do seu livro A Arte da Atenção (Editora Verus). Mas a maioria de nós é desatenta em relação às outras pessoas, a si mesmo, ao que está ao redor...

A atenção é a união do coração com a inteligência. A falta dessa conexão é o sinal mais concreto de que algo se quebrou na essência do ser humano. As causas são múltiplas - o estresse, o excesso de informação e de barulho são algumas delas. E de novo a atenção é o jeito de sair dessa roda-viva e de estar mais equilibrado.

- Como isso é possível?

Primeiro, estimulando os cinco sentidos: tato, olfato, audição, visão, paladar. Tocar, andar descalço, sentir a terra é uma das infinitas formas de fazer com que a mente, o corpo e as emoções estejam presentes no mesmo lugar, no mesmo instante. Depos, é preciso usar os sentidos para perceber o que está além deles - por exemplo, sentir que o silêncio faz parte da música, o que é dito nas entrelinhas, o que é invisível e tão concreto como a fé ou o amor. Assim é possível estar aberto a uma percepção mais verdadeira de tudo o que nos cerca.

- Por falar em amor, estamos numa era marcada pelo desencontro entre homens e mulheres, pelo conflito nas relações e pela solidão. Como é possível reverter isso?

De novo, a resposta é: pelo caminho da atenção. Só com ela, e não com a ilusão, podemos reconhecer que a outra pessoa existe e que não vai corresponder completamente à imagem que eu espero dela. Um dos dramas do homem contemporâneo é a perda da conexão com o coração. O sexo foi desconectado do sentimento, e isso causa muita nostalgia e desconforto. Amar supõe maturidade para não consumirmos o outro como um objeto de prazer, como se fôssemos grandes bebês, sugando matrizes de afeto.

- Mas, acredito, nada orientado por esse senso de satisfação imatura pode ser confundido com o amor.

Começa por aí, a criança ama sua mãe e a come. O que é bonito num bebezinho é menos apreciável em pessoas de 30, 40, 50 anos, não é?

- O que o senhor diria para quem está vivendo uma crise conjugal ou a solidão?

Para amar, temos de reconhecer que nós não sabemos amar, que é preciso experiência de uma vida inteira para aprender isso. E também conhecer a si mesmo, estar sozinho sem tristeza ou ansiedade.

- Então, fazer um pouco de silêncio por dia já ajudaria?

Isso não é apenas bom, mas necessário. O homem não vive apenas de pão. Vive também de ternura e desse alimento do ser profundo que é o silêncio. Por meio dele, podemos diminuir as expectativas sempre frustradas de que o amante (ou tudo ao seu redor) vá preencher nossas lacunas. Além disso, antes de amar alguém é preciso se aceitar e reconhecer os próprios limites. Não há amor sem humildade. No Cântico dos Cânticos, uma ode ao amor, escrita por Salomão, no Velho Testamento, o Bem-Amado diz à Bem-Amada: "Se não fores quem tu és, como poderemos nos encontrar?"

- E quanto às nossas tantas ilusões a respeito do par perfeito, dos encontros cinematográficos. Elas não são um vício?

Sim, acredito que produzimos muitas ilusões, desilusões e sofrimentos porque temos uma imagem idealizada do homem, da mulher, do romance. Isso impede o encontro real, verdadeiro.

- O senhor afirma que a paz no mundo depende de que ela exista entre homens e mulheres. Por que?

Em hebraico, a palavra paz é shalom, que significa ser inteiro. Nós não estamos em paz porque não somos inteiros. Muitas vezes a cabeça quer dominar tudo, desconfia do coração e dos sentidos. Algumas vezes é o sexo que sobe à cabeça e se sobrepõe à razão e ao sentimento. Não é fácil essa integração, mas podemos tentar juntar a intuição e a razão, qualidades masculinas e femininas, trabalho e descanso em nossas rotinas.

- O que perdemos quando o sexo é dominado pela razão?

A chance de aproveitar a intimidade de forma mais plena e sagrada. O Evangelho escrito por Felipe, apóstolo do Cristo, fala do sexo como a mais profunda comunhão do sopro divino, que resulta na fecundação, na possibilidade de uma nova vida. E isso não tem nada a ver com pecado, culpa ou jogo de poder. O famoso Kama Sutra - tratado sexual indiano, escrito cerca de 300 anos antes de Cristo - foi censurado pela Igreja, porém, em vez de suprimir desenho com as posições de cópula, o que foi omitido da versão original foram, justamente, os textos sagrados que acompanhavam cada imagem e foram julgados como profanos. E hoje, décadas depois da Revolução Sexual, podemos ter mais liberdade, no entanto, ainda não encaramos o sexo como um ritual divino - e isso também é fundamental para reconquistar a inteireza de corpo, mente e coração.

- Temos mais medo da vida ou da morte?

Temos medo de amar, pois, se amamos, arriscamos a vida. O medo de morrer é proporcional ao medo de viver. Alguém que não tem medo de viver, sobretudo, alguém que não tem medo de amar, não tem medo de morrer.

- Pensar em morrer já dá medo!

Aquele que tem consciência da morte é maior que a morte e não vítima dela. Apenas aquele que tem consciência da doença pode buscar a cura. O LIvro Tibetano dos Mortos ensina a ver a morte como uma ocasião de despertar, não somente para ele, mas para os que continuam vivos. Nessa atitude, o ser humano torna o dom da vida mais forte que a morte.

- O senhor acredita em milagres?

Santo Agostinho (354-430) dizia: "Os homens se surpreendem porque o Cristo transformou água em vinho. Mas vejam, é isso que faz a vinha todos os anos. Se surpreendem porque o Cristo ressuscitou os mortos. Mas perceba que há 30 anjos não estavas nem vivo." Isso quer dizer que somos tão cegos diante dos milagres do quotidiano que precisamos de fatos extraordinários para despertar. Mas, se soubermos ver o que vemos, tudo será milagre. Estar vivo para experimentar mais um dia é um milagre e não algo banal. Isso fica mais claro nas palavras de santa Tereza d'Ávila (1515-1582): "No dia em que as panelas da cozinha forem tão sagradas quanto os vasos dos altares, o sagrado estará na Terra e em cada gesto do quotidiano."

Revista Bons Fluidos (Brasil) - Dezembro 2002

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: